quinta-feira, 9 de outubro de 2008









Impacto da Perda Dentária na Qualidade de Vida


Impact of Tooth Loss in Quality of Life


Maria Elisa de Souza e Silva - Maria Elisa de Souza e Silva - Universidade Federal de Minas Gerais
Ênio Lacerda Villaça
Cláudia Silami de Magalhães
Efigênia Ferreira e Ferreira







 


Resumo




Para avaliar o impacto da perda dentária na qualidade de vida, selecionou-se 50 pacientes, usuários do Serviço Público de Saúde, em tratamento para inserção ou substituição do par de dentaduras. Antes do tratamento, aplicou-se o Oral Health Impact Profile (OHIP-14) e a coleta de dados sociodemográficos. Os escores do OHIP-14 foram obtidos por meio do o peso de cada pergunta associado à escala de Likert. Maior a pontuação alcançada, maior o impacto negativo da dimensão na qualidade de vida. Na amostra, 82% eram do gênero feminino, 52% tinham 41 a 60 anos (média de 59,1 anos), e 34%, casada. Para cada dimensão os valores máximos OHIP-14 foram: Desconforto Psicológico (122); Dor (121); Inabilidade Psicológica (113); Inabilidade Física (109); Limitação Funcional (93); Incapacidade (82) e Inabilidade Social (76). A perda dentária ou o uso de próteses inadequadas implicam impactos negativos na qualidade de vida, especialmente no que se refere à preocupação, estresse decorrente de problemas na boca e à vergonha. Foi percebido menor impacto no que se refere às relações interpessoais e ao desenvolvimento das atividades rotineiras - dimensão Inabilidade Social. Estas informações são relevantes para os profissionais, pois ampliam seu conhecimento sobre pessoas desdentadas e melhoram sua capacidade de lidar com elas.


 


No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) não tem adequada estrutura nem é suficiente para absorver a demanda por atenção em saúde bucal da população adulta, especialmente nas faixas etária mais avançadas 1. Esse é um dos motivos pelos quais dentes que poderiam ser recuperados são extraídos 2, uma vez que tal alternativa é considerada a mais prática e, também a mais econômica 3. A maior parte das pessoas que perdem os dentes vê-se impossibilitada de recompor as perdas por meio de próteses, principalmente devido à falta de recursos financeiros 4,5. Além disso, os brasileiros que fazem uso de próteses totais removíveis utilizam-nas por um tempo que se estende muito além do prazo recomendado para sua devida substituição 1.
O levantamento epidemiológico da população brasileira divulgado em 1988 expôs, pela primeira vez, a dura realidade da condição de saúde bucal do Brasil. Tal levantamento, que abrangeu apenas a população de até 59 anos, tornou possível verificar o alto valor percentual do componente P (Perdido) nos valores do índice CPO-D médio (dentes cariados, perdidos e obturados) dos adultos. Na população entre 35-44 anos, observou-se o CPO-D de 22,5, e, na faixa que se encontra entre 50-59 anos, o de 27,2. O componente P, nas duas amostras, representou, respectivamente, 66% e 86% dos valores relatados 6,7.
O inquérito epidemiológico “Levantamento das Condições de Saúde Bucal da população brasileira-SB-Brasil, 2003” mostrou as condições atuais de saúde bucal da população adulta do Brasil. Na faixa etária de 35-44 anos, o índice CPO-D médio dessa população foi 20,13, sendo o componente P (perdido) responsável por um percentual de 66% do índice. Na faixa etária de 65-74 anos, o CPO-D foi 27,79 e o componente P alcançou o percentual de 93% do índice7. Em todo o País, na faixa etária de 30-44 anos, 30% das pessoas já são desdentadas e 75% dos idosos não têm um dente sequer na boca8. De maneira contraditória, mais da metade das pessoas com idade superior a 65 anos que participou das entrevistas do levantamento sobre as condições de saúde bucal da população brasileira, quando consultada sobre sua própria saúde bucal, fala e mastigação, classificou-as como boa ou ótima 7.
Comparando-se os dados revelados, medidos pelo índice CPO-D, em 1988 e em 2003, no que se refere à faixa etária de 35-44 anos, pode-se verificar que houve pouca melhoria da condição de saúde bucal dessa parte da população brasileira e que as extrações dentárias são, ainda, largamente utilizadas como tratamento para os problemas bucais 4,9.
É possível que alguma alteração desse quadro epidemiológico tenha ocorrido em função da inserção da Odontologia no Programa de Saúde da Família e da criação dos Centros de Especialidades Odontológicas –CEOs, dentro da política do Brasil Sorridente implantada a partir de 20038, no entanto não existem levantamentos epidemiológicos globais mais atualizados que possam trazer à tona, a medida exata desses benefícios. E embora a saúde bucal seja reconhecida como importante, uma considerável parcela da população não tem acesso aos necessários serviços de saúde e a mutilação dentária, resultado da perda dos dentes, acaba por impor às pessoas mudanças físicas, biológicas e emocionais5.
Na rotina diária das pessoas, as alterações produzidas pela perda total dos dentes deveriam se constituir em objeto de preocupação da classe odontológica10. No entanto a abordagem dos profissionais, na maioria das vezes, apenas considera as perspectivas biológicas e restauradoras11, ou seja, a recomposição dos dentes deve ser realizada dentro dos melhores princípios da técnica, negligenciando-se as repercussões da perda dental na qualidade de vida dos pacientes4,11.
O presente estudo foi desenvolvido com o objetivo de avaliar o impacto da perda dentária na qualidade de vida de um grupo de pacientes desdentados e se identificarem as dimensões da qualidade de vida mais afetadas pela condição de saúde bucal.




Métodos
A Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG é uma das referências para atendimento da população encaminhada pelo Sistema Único de Saúde-SUS de Belo Horizonte, Minas Gerais, no que se refere à confecção e à inserção de próteses totais removíveis e absorve, em média, 60 pacientes por semestre para esse tipo de atendimento. O tratamento é realizado por meio da disciplina Prótese Total Removível, cujo conteúdo é obrigatório na grade curricular do curso de Odontologia dessa Faculdade.
Para a composição da amostra deste estudo, de um universo de 66 usuários desdentados agendados para tratamento na referida disciplina, no primeiro semestre letivo de 2005, foram selecionados 50 pacientes, que se enquadraram nos critérios de seleção: já ter perdido todos os dentes e estar iniciando o tratamento para a inserção do par de próteses totais removíveis; e no critério de exclusão: o de se caracterizarem como não-leitores. A opção de se trabalhar apenas com os pacientes leitores baseou-se no fato de que estes, por serem adultos, compareciam desacompanhados à consulta, não havendo, portanto, como lhes solicitar as assinaturas de concordância em participar do projeto. Além disso, mesmo que acompanhassem a leitura quando da aplicação do questionário, não seria possível garantir fidedignidade na marcação das suas respostas. Entre os 16 pacientes excluídos do estudo, 14 não foram entrevistados, por se enquadrarem no critério de exclusão e outros dois não aceitaram participar da pesquisa.
Em se tratando de pesquisa que envolve seres humanos, esta se iniciou após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (Parecer no. ETIC 442/04).
Os dados do estudo foram coletados com a aplicação do questionário OHIP-14 e através do preenchimento de um formulário que permitiu, inicialmente, a coleta de dados para a caracterização da amostra, incluindo as variáveis gênero, idade, situação laboral, situação civil e tempo de uso de próteses.
No momento seguinte, utilizou-se a forma simplificada do questionário do Oral Health Impact Profile (OHIP-14). O questionário OHIP-1412,13 vem sendo bastante utilizado para indicar os aspectos da qualidade de vida mais afetados pelo estado de saúde bucal e é um forte aliado no estabelecimento de melhores abordagens para atendimento integral ao paciente. Esse instrumento permite indicar as dimensões da qualidade de vida afetadas pela condição de saúde bucal. Os aspectos levantados nas questões aplicadas seguem o modelo conceitual proposto por Locker14, que aborda as condições físicas, em que estão incluídos fatores relacionados à locomoção e movimentação, à dor, à alimentação, ao autocuidado e ao descanso; as condições psicológicas, que englobam o comportamento emocional, o grau de preocupação e a comunicação; e as condições de interação social, em que se observam fatores relacionados ao trabalho, à interação social, à rotina diária e ao entretenimento. Tal abrangência de abordagem é importante e adequada, considerando-se que é perfeitamente possível uma doença produzir impacto em uma ou mais dimensões da vida das pessoas, ou eventualmente, em todas elas14.
O formato original do Oral Health Impact Profile-OHIP, composto por 49 questões, já foi validado em várias pesquisas, que confirmaram suas boas propriedades psicométricas e sua eficiência13,15,16,17.
O questionário OHIP-14, denominação conferida à sua forma simplificada, demonstra propriedades similares às do formato original e, sendo mais sucinto, requer menos tempo para aplicação, o que favorece sua utilização, inclusive, em Serviços de Saúde, em processos de avaliação de saúde bucal e qualidade de vida15. Também no formato reduzido, esse instrumento foi considerado válido para aplicação em pesquisas relacionadas à qualidade de vida e à saúde bucal da população18.
Em 2002, Allen e Locker19desenvolveram uma versão reduzida do OHIP especialmente focada em pessoas desdentadas e verificaram que seu desempenho e validade foram compatíveis ao instrumento original e até um pouco melhores que o OHIP-14. No entanto, optamos por não utilizar este instrumento tendo em vista que o mesmo não foi testado e validado para a língua portuguesa. Já o OHIP-14 foi testado e validado para uso em função da cultura e da língua locais, mediante uma pesquisa realizada com puérperas, em que se verificou o impacto negativo da dor de dentes na qualidade de vida dessas mulheres20. O questionário constitui-se de 14 perguntas, duas para cada uma das sete dimensões do instrumento: Limitação Funcional, Dor, Desconforto Psicológico, Inabilidade Física, Inabilidade Psicológica, Inabilidade Social e Incapacidade.
Todas as perguntas do questionário OHIP-14 procuram relacionar a condição bucal ou das próteses em uso aos temas de cada uma. A dimensão Limitação Funcional inclui perguntas sobre dificuldade para falar e piora no sabor dos alimentos; na dimensão Dor, pergunta-se sobre a sensação de dor e incômodo para comer; na dimensão Desconforto Psicológico, as perguntas se referem à preocupação e stress pela condição bucal. O prejuízo na alimentação e a necessidade de ter de parar de se alimentar são os quesitos da dimensão Inabilidade Física, enquanto que na Inabilidade Psicológica as perguntas referem-se à dificuldade para relaxar e ao sentimento de vergonha em função da condição bucal. A dimensão Inabilidade Social inclui perguntas sobre irritação com terceiros e dificuldade de realizar atividades da rotina diária por causa da condição bucal; e as perguntas que compõem a dimensão Incapacidade buscam saber se há a percepção de que a vida tenha piorado e se a pessoa se sentiu totalmente incapaz de desenvolver suas atividades rotineiras.
Foi feito um pré-teste com aplicação do OHIP-14 a 10 pacientes, cujo tratamento iniciou-se em semestre anterior ao da amostra do estudo. Nessa oportunidade verificou-se que não houve dificuldade no que se refere ao entendimento das questões do instrumento, ao tempo gasto (cerca de 20 minutos) e ao local escolhido para o desenvolvimento da atividade.
A coleta dos dados foi realizada nas duas primeiras semanas do tratamento e, para tanto, os pacientes foram acomodados, individualmente, numa sala especialmente reservada para esse fim. A pesquisadora procedeu à leitura de cada pergunta juntamente com o participante. Após essa leitura, o voluntário escolheu livremente a resposta a cada questão, entre cinco opções, conforme a Escala de Likert21 - Sempre, Com Freqüência, Às vezes, Raramente e Nunca - e acompanhava a marcação indicada. Os dados foram lançados no Programa Epi Info, versão 2005, que permitiu o cálculo das médias e percentuais para caracterização da amostra, de acordo com as variáveis listadas.
Posteriormente, os dados foram exportados com vistas à composição de planilhas no Programa Excell@ da Microsoft, versão 2001. A utilização desse Programa permitiu a ordenação dos dados de acordo com o objetivo a ser verificado, bem como o cálculo do valor OHIP-14, em pontos para cada paciente entrevistado, em cada dimensão, e na somatória delas. As pontuações foram obtidas a partir da aplicação do escalonamento Likert em associação com o peso de cada pergunta, conforme preconizaram os idealizadores do instrumento12. A cada categoria foi atribuído um valor entre 1 e 5, que era multiplicado pelo peso da questão. A resposta Sempre recebeu o maior número de pontos, 5; Com Freqüência, 4 pontos; Às Vezes, 3 pontos; Raramente, 2 pontos e “Nunca” recebeu 1 ponto.
No questionário OHIP-14, uma vez que cada duas perguntas correspondem a uma dimensão, chegou-se à pontuação de cada dimensão por meio da soma dos valores OHIP-14 das duas perguntas correspondentes. Na hipótese de uma dimensão atingir o máximo possível de pontuação OHIP-14, sua somatória chegaria a 250 pontos.

Resultados
A amostra foi composta de 82% do gênero feminino e 18% do gênero masculino. Em um intervalo de 37-83 anos, a média de idade dos participantes foi 59,1 anos (+ 11,9 anos). As características sociodemográficas da amostra podem ser visualizadas na TAB. 1.Apenas 24% da amostra (12) estava em atividade laboral, os demais eram aposentados ou não trabalhava.
O gráfico 1 mostra os valores obtidos para cada dimensão, após a apuração das respostas.
Observa-se que Desconforto Psicológico, Dor e Inabilidade Psicológica foram as dimensões de maior impacto na qualidade de vida das pessoas entrevistadas. No entanto, tomando-se a pontuação alcançada como referência, a perda dentária total não representou um forte obstáculo à interação social dessas mesmas pessoas.
Tanto para os 10 pacientes que alcançaram os maiores valores do OHIP-14 quanto para os 10 pacientes que atingiram os menores valores, as perguntas que obtiveram as maiores pontuações foram as referentes a sentir-se incomodado ao comer algum alimento por causa de problemas com sua boca ou com sua dentadura – Dimensão Dor - e o sentimento de vergonha por causa de sua boca ou de sua dentadura - Dimensão da Inabilidade Psicológica..
A maior parte dos entrevistados relatou Nunca ter enfrentado problema com relação às dimensões: Incapacidade (80%), cujas perguntas referem-se à percepção de que a vida ficou pior por causa de problemas com seus dentes, sua boca ou dentadura e se ficou totalmente incapaz de fazer suas atividades diárias por causa de problemas com seus dentes, sua boca ou dentadura; Inabilidade Social (79%), que inclui questionamentos sobre a pessoa ter ficado irritada com outras pessoas por causa de problemas com seus dentes, sua boca ou dentadura e tido dificuldades de realizar suas atividades diárias por causa de problemas com seus dentes, sua boca ou dentadura, e a dimensão Limitação Funcional (63%) cujas questões levantam a percepção sobre problemas para falar alguma palavra por causa de problemas com seus dentes, sua boca ou boca dentadura e se o sabor dos alimentos ficou pior por causa de problemas com seus dentes, sua boca ou dentadura.
Ao se considerar a freqüência da resposta Sempre (TAB.2), permanecem como dimensões de maior impacto na qualidade de vida Desconforto Psicológico (17%), Inabilidade Psicológica (17%), Inabilidade Física (10%) e Dor (9%).
Entre as 14 questões aplicadas, a que apresentou o maior percentual da resposta Sempre foi a que se refere à experiência do sentimento de vergonha por causa da boca - Dimensão Inabilidade Psicológica. Entre os 10 pacientes com os maiores valores de OHIP-14, nove escolheram esta opção.
Na TAB. 2 apresentam-se as freqüências das respostas de menor e maior valor em cada dimensão considerada. Além da vergonha por causa da boca, entre todos os pacientes entrevistados, a questão sobre incômodo para comer por causa de problemas com a boca ou com a dentadura -dimensão Dor -, a questão sobre preocupação com a situação da boca ou com a dentadura – dimensão Desconforto Psicológico - e a que se refere à impressão de que a alimentação ficou pior por causa de problemas com a boca ou com a dentadura - dimensão Inabilidade Física-, configuram-se como aquelas cujas respostas foram mais enfáticas, ficando a escolha sobre as opções Sempre e Com Freqüência em expressivo percentual de vezes -36%, 38% e 34%, respectivamente.
O maior percentual de respostas de baixo impacto foi apurado relativamente à questão que aborda a incapacidade para a realização das tarefas. A este quesito, 98% da amostra, ou seja, 49 dos 50 entrevistados respondeu, “Nunca”.


Discussão
A avaliação do impacto da saúde bucal na qualidade de vida das pessoas realizada a partir da utilização de um questionário estruturado como o OHIP-14 apresenta vantagens como a possibilidade de o pesquisador explicar os objetivos da pesquisa, orientar o preenchimento do instrumento e obter dados mais uniformes e úteis. No entanto esse tipo de instrumento tem limitações como o risco de distorções, por insegurança nas respostas devido à presença do entrevistador e por menor liberdade nas respostas, uma vez que elas já vêm pré-estabelecida22.
Nos últimos anos vem sendo observada a preocupação em se avaliar o impacto da perda dental e da utilização de próteses removíveis na qualidade de vida das pessoas e os resultados das pesquisas desenvolvidas nessa direção demonstram que as repercussões são relevantes e não podem ser desconsideradas23,24,25,26. Grande atenção, deve, pois, ser dispensada aos pacientes, especialmente no momento de preparo deles para a perda total dos dentes, no atendimento das suas expectativas com a inserção das próteses e no seu posterior monitoramento27.
A perda dentária pode ser considerada como uma saída para o fracasso de um tratamento conservador anteriormente realizado28 e pode se constituir em um evento de forte impacto, que, além de causar danos funcionais, é capaz de desequilibrar a organização psíquica e social das pessoas 11.
No presente estudo, foram incluídos como voluntários, pacientes desdentados, com necessidade de reposição protética. O fato da maioria da amostra ter sido formada por mulheres (82%) é comum nos levantamentos realizadas nas clínicas da Faculdade de Odontologia da UFMG29,30. Este dado não está relacionado à prevalência de uma situação num determinado grupo, mas à disponibilidade de tempo para freqüentar clínicas de ensino, na maioria das vezes, em horários diurnos e cuja expectativa de conclusão do tratamento, em função da inexperiência dos alunos, é de um tempo maior.
A maior parte do grupo de voluntários (98%) apresentava idade superior a 40 anos. O expressivo percentual de indivíduos (52%) entre 40 anos e 60 anos, está relacionado a vários fatores, sobretudo socioeconômicos, dentre eles, a falta de acesso ao tratamento, vivenciada pela grande maioria da população brasileira, motivo pelo qual é freqüente, nessa população, a perda dentária precoce2. Mesmo sendo considerada uma alternativa mais prática e econômica3, a reabilitação protética para desdentados, ofertada no rol de procedimentos da atenção secundária, é quase inexistente no serviço público e insuficiente para atender à demanda da população1.
De fato, até 2004, apenas 2,8% do tratamento realizado no SUS era de maior complexidade. Com a inserção da Odontologia no Programa de Saúde da Família e com a implantação dos Centros Especializados Odontológicos (CEOs) e dos Laboratórios Regionais de Próteses Dentárias (RPDs), integrantes do Projeto Brasil Sorridente, a partir de 2004, é possível que ocorra, em médio prazo, uma redução da demanda por tratamento mais complexo, principalmente próteses totais, ainda bastante expressiva em nosso país. Ressalte-se que, na atualidade, para boa parte da população com mais de 44 anos, a solução para os problemas de saúde bucal deve ser a inserção de próteses totais removíveis8.
Braga et al1, 2002, recomenda-se que as próteses totais removíveis sejam trocadas, no mínimo, a cada cinco anos, em função do desgaste do material utilizado – acrílico - e dos malefícios que podem decorrer desse desgaste. No entanto, se o acesso à atenção odontológica para a reabilitação é escasso, pode-se dizer que ele inexiste para a manutenção da prótese. Considerando-se os pacientes da amostra estudada, observou-se que 80% dos que já usavam prótese estavam utilizando a mesma prótese há mais de 10 anos, o que é usual à população brasileira.
Entre todas as perguntas do instrumento aplicado (OHIP-14), a que provocou as respostas mais enfáticas é a que argúi sobre o paciente se sentir envergonhado por causa dos problemas com sua boca ou com sua dentadura – dimensão Inabilidade Psicológica -, o que corrobora o resultado de outras pesquisas que abordam a dificuldade de aceitação e o sentimento de humilhação que envolve uma pessoa desdentada5,11,23,25. Mesmo nos pacientes cujas pontuações OHIP-14 foram menores, o que indica menor percepção do impacto da condição bucal na sua qualidade de vida, a questão da vergonha é bastante ressaltada. A função estética dos dentes é, muitas vezes, considerada mais importante que a função mastigatória. Sob o ponto de vista subjetivo, já se verificou que a perda de elementos localizados mais posteriormente na boca tem pouco ou nenhum impacto na vida das pessoas, diferentemente da perda dental total ou de dentes anteriores, que motiva as pessoas a buscar tratamento para substituição deles31.
A ausência total dos dentes também implicou impacto negativo no que se refere à alimentação - Inabilidade Física. A estabilidade das próteses, especialmente as mandibulares, e uma adequada mastigação dos alimentos podem ser citadas como fatores que muito interferem na qualidade de vida de pacientes desdentados, levando a uma pior condição de saúde geral32,33. Embora tais estudos apontem nessa direção, o estudo realizado por Gomes et al34 que não há uma relação direta entre a ausência de dentes e uma pior condição de saúde geral.
A ausência total dos dentes e a utilização de próteses totais removíveis inadequadas podem causar efeitos como dificuldade para relaxar, embaraço, restrição em comer determinados alimentos e até perda da vontade de sair de casa25,35. Mesmo que não tenha, ainda, sido comprovada uma forte relação entre a presença de sintomas de disfunção craniomandibular e a ausência ou uso de próteses totais, os profissionais devem estar sempre atentos à possibilidade de se estabelecer um plano correto, que resulte na inserção de próteses mais confortáveis e adequadas36,37,38.
Embora a condição de saúde bucal cause impacto em vários aspectos da qualidade de vida das pessoas39, para esse grupo, na dimensão Inabilidade Social, que se refere à interação social e ao desenvolvimento das atividades rotineiras, o prejuízo observado, representado pela menor pontuação alcançada, foi bem menor que para as demais dimensões. Neste estudo, comprovou-se que os aspectos que mais incomodam os pacientes desdentados são a vergonha de não ter dentes - dimensão da Inabilidade Psicológica -, o incômodo ao comer - dimensão da Dor - e a preocupação com a boca - dimensão Desconforto Psicológico - e prejuízo na alimentação – dimensão Inabilidade Física.
É interessante observar, ainda, que a resposta mais freqüente para todas as perguntas do OHIP-14 foi Nunca, o que corrobora os resultados obtidos em trabalhos que apontam para o fato de as pessoas terem precária percepção de seus problemas bucais, como se estes fossem inevitáveis nas faixas etárias mais avançadas40. A extração total dos dentes representa, muitas vezes, representa uma solução definitiva para a questão da dor4,28.
Mesmo a dimensão que apresentou a maior pontuação OHIP-14, Desconforto Psicológico, não chega à metade do maior valor possível de se atingir. No entanto, os problemas advindos da falta dos dentes podem abranger não só a limitação da capacidade mastigatória41, capacidade de fonação, mas também o comprometimento da aparência estética11 e a descaracterização da identidade facial, retratando um quadro social de menor privilégio, o que leva o paciente a se tornar uma pessoa com dificuldades de aceitação social plena, portador de um estigma42,43.
O fato de algumas dimensões serem mais freqüentes e importantes para o grupo estudado não invalida ou torna as outras, menos importantes. Individualmente, é possível que a ausência dos dentes produza maior impacto em uma ou mais dimensões na vida de uma pessoa, ou, eventualmente, em todas elas14.
Apenas a abordagem quantitativa é, porém, insuficiente para permitir um bom entendimento dos sentimentos que envolvem as pessoas com perda total dos elementos dentais, ainda que possa, sem dúvida, contribuir para delinear caminhos que possibilitem um aprofundamento no conhecimento e na interpretação desses sentimentos, bem como de suas conseqüências na qualidade de vida das pessoas. No entanto, a utilização de um instrumento como este, antes do tratamento para a confecção de próteses totais pode orientar o profissional com relação ao impacto da perda dentária para as pessoas e os cuidados que se deve ter na sua orientação, acolhida e atendimento e proservação.


Conclusão
Verificou-se, no grupo de pessoas desse estudo, que a ausência de dentes ou a utilização de próteses inadequadas pouco interfere na capacidade delas realizarem suas atividades diárias e de se inter-relacionarem no meio em que vivem, embora provoquem impactos negativos em algumas dimensões da qualidade de vida, que foram Desconforto Psicológico, Dor e Inabilidade Psicológica.
Essas informações são importantes para uma adequada capacitação dos profissionais responsáveis pela atenção aos pacientes que experimentaram ou estão por experimentar a perda total ou parcial, dos dentes. É mister que os aspectos psicológicos e as questões subjetivas que envolvem cada situação sejam considerados tão essenciais quanto o foco técnico.


Colaboradores

Maria Elisa de Souza e Silva idealizou e redigiu o projeto de pesquisa, realizou as entrevistas, o levantamento e análise dos dados, o levantamento bibliográfico e a estruturação, a redação da primeira versão do artigo e da versão final do texto. Efigênia Ferreira e Ferreira auxiliou na elaboração da metodologia, na revisão bibliográfica, na análise dos resultados e redação da versão final do artigo.

Cláudia Silami Magalhães participou da análise dos resultados e da redação da versão final do artigo.

Ênio Lacerda Vilaça contribuiu para a organização e a análise dos dados, bem como para o processamento no Programa EpiInfo e para a redação da versão final do texto.

Agradecimentos
Os autores agradecem ao Professor Ricardo Hiroshi Takahashi pelo apoio técnico e pela contribuição no momento da realização dos cálculos matemáticos para apuração das pontuações obtidas.


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Fonte: www.abrasco.org.br  Postado em Agosto de 2008 por Ricardo Toscano Cirurgião-Dentista especialista em Odontologia do trabalho UFSC.


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Quem sou eu

Joinville, Santa Catarina, Brazil
Por Ricardo Toscano, Cirurgião-Dentista graduado pela Unifal, especialista em odontologia do trabalho pela UFSC, mestre em odontologia area de concentraçao em implantodontia cirurgica/protetica pelo Instituto latino Americano de Pesquisa e Ensino Odontologico,reabilitador oral clinico. Responsável técnico pelo Instituto Odontologico Toscano. Notícias,ferramentas e artigos na área de Reabilitação Oral com ênfase na interdisciplinaridade e multidisciplinaridade.